Polícia e corrupção

Ao comentar com uma amiga que eu havia sido rude com um policial que havia me interpelado na estrada, ela mostrou-se surpresa por não esperar tão reação de minha parte. A verdade é que, a partir de minha experiência como jovem pobre da periferia de uma grande cidade, não tenho uma boa imagem da polícia. Há, evidentemente, profissionais justos e honestos, no entanto, tenho dúvida se representam a maioria. E aqui na África os exemplos que tenho também não são bons.

Recordo que certa vez, eu deveria ter uns treze anos, meus colegas e eu estávamos coletando no comércio local doações para uma festa na escola. Quando percebemos que nosso ônibus se aproximava do ponto de parada, deixamos às pressas a loja em que estávamos e fomos para o ônibus. Apenas alguns minutos depois, uma viatura da polícia fez com que o veículo parasse bruscamente. Fomos violentamente tirados do ônibus e colocados no chão para uma revista com armas apontadas para nós. Devo Recordá-los de que éramos adolescentes de não mais de treze ou catorze anos. Fomos considerados suspeitos de roubo à loja por termos corrido para entrarmos no ônibus. Não havia nenhuma queixa de roubo, nenhuma acusação, mas jovens pobres não podem correr para pegar o ônibus como todo mundo. Não foram mais truculentos conosco porque a mãe de um dos nossos estava no ônibus e pode nos defender. Talvez alguns pensem que esse foi um episódio isolado, no entanto, infelizmente tantos outros se deram e ouso dizer que essa é, infelizmente, uma rotina na vida de jovens pobres, pior ainda se forem negros.

Aqui no continente africano, com exceção do Marrocos, em uma distância de 10 km, pode haver diversas barreiras de diferentes setores da polícia. Se o condutor escapar de uma, cai em outra. Na maioria das barreiras, o motorista, ao receber o sinal do policial para parar, apenas alcança ao oficial, sem discrição alguma, certa quantia de dinheiro e parte. Às vezes, uma das partes tenta negociar, o motorista pode alegar que pagou alguns metros antes para outro policial e às vezes o policial pode alegar que é muito pouco o que está recebendo. Como a corda estoura sempre no lado mais fraco, são quase em vão as tentativas do motorista para não pagar.

Na Guiné-Bissau, em alguns vilarejos, um imposto não oficial é cobrado por policiais aos vendedores ambulantes. Por que vocês não protestam contra a ação da polícia? Questionei certa vez um jovem que conversava comigo – e suas respostas, para minha surpresa, revelaram grande empatia para com os que o oprimiam. Eles recebem um salário muito pequeno, às vezes ficam meses sem receber. Se não cobrarem propinas, não podem sustentar suas famílias – afirmou o rapaz. A corrupção policial é tão grande e tão recorrente que parece ser vista como natural. Na Libéria, há, inclusive, próximo às barreiras, grandes painéis com desenhos ilustrativos indicando que é crime pedir ou oferecer propina, o que indica que as autoridades governamentais estão cientes dessa realidade. Certamente não será um outdoor que irá mudar ou impedir essa prática.

Até agora, não vi presença mais ostensiva da polícia do que na Costa do Marfim. Em outros países, sabia que, se eu não quisesse parar para dar explicações aos policiais de quem eu era e o que eu estava fazendo, bastava caminhar por estradas rurais. Na Costa do Marfim, ao longo de um trecho de 20 km em uma estrada de terra em zona rural, pode haver policiais em mais de três pontos diferentes. Nesses lugares, o alvo são os motoqueiros. Devo acrescentar que, em regiões de difícil acesso e estradas muito ruins, a motocicleta é o meio de transporte mais comum. Esses motoqueiros estariam cometendo alguma infração? Sim, várias. A maioria não tem habilitação. Penso que a maioria também não tenha documento do veículo, nesses lugares a compra e venda é feita de modo informal. Além disso, há tantas outras irregularidades, um espelho quebrado, um farol que não funciona, uma parte amarrada com arame e é comum ver quatro ou cinco passageiros, obviamente sem capacetes, em uma única moto. São por essas razões que são parados. Não estão transportando drogas, nem tramando nenhuma conspiração contra o governo. Trata-se de pessoas humildes, trabalhadores e trabalhadoras do campo que devem pagar diversas vezes ao dia para poderem se deslocar na região em que vivem.

Comigo, na maioria dos países, alguns policiais em uma primeira abordagem são pouco simpáticos, mas tornam-se gentis ao saber o que estou fazendo. A única vez que um policial tentou me pedir propina foi na Guiné. Eu caminhava por uma avenida movimentada, sem meu carrinho Santiago. Ao me avistar, o policial, sem nenhuma saudação, exigiu que eu apresentasse passaporte e visto. Na Guiné, o visto é eletrônico, mas o policial, despreparado para abordar turistas, não sabia disso. Expliquei que eu portava tudo o que era exigido de um turista e que, se ele tivesse alguma dúvida, poderia ligar para a polícia de migração. Ainda tentando impor certa autoridade muito seriamente, ele me disse: e tu não vais deixar nada para mim? Eu sorri e lhe disse: posso lhe dar um abraço, ou melhor, posso lhe dar 214 milhões de abraços da parte de cada um dos brasileiros e brasileiras. Ele pareceu não ter gostado de minha brincadeira e apenas fez sinal para que eu partisse. Eu sinto que estou capacitado para argumentar, mas e os que não estão, o que podem fazer? O que eu, como viajante, posso fazer para que essa realidade mude? Aparentemente, nada e isso gera em mim muita frustração e me deixa sempre na defensiva quando vejo um policial. Não tenho nenhum complexo de super-herói. E tampouco creio em ações individuais, mas eu realmente gostaria de poder fazer alguma coisa. Se tiveres alguma sugestão, comente abaixo, por favor. 

Uma hospedaria muito peculiar

É uma luzinha fraca, quase chata, intermitente e multicor. Na penumbra o prazer está mais à vontade. A música é forte. Nas mesas, cervejas e ao redor delas íntimos desconhecidos. Às vezes, como ontem à tarde, há discussões de ânimos exaltados. Ela exigia do rapaz que estava a sua frente, “eu quero meu dinheiro, tu não vais sair daqui enquanto não me pagar!” 

Quando eu era criança escutava minha mãe dizendo que a estratégia era embebedar o cliente para poder lucrar mais, ele gastava mais com bebida e ainda estava mais vulnerável para ser roubado. E naquela situação, obviamente, era ele que reclamava pelo dinheiro que de forma alguma seria devolvido, pelo fato que bêbado nunca tinha ou terá razão. 

Hoje pela manhã me acordei com vozes de crianças que ingenuamente brincavam pelo salão. Não tinha como não ser levado para os meus cinco ou seis anos. Por volta das nove horas, minha irmã Aline e eu éramos conduzidos ao trabalho da mãe. Os quartos eram colados um no outro e a cama dela era de tijolo. Muito similar ao lugar em que estou agora. No salão tomávamos café com as amigas da mãe que também estavam acordando. 

Ontem, logo que entrei aqui, notei que a placa de hotel era só mais um disfarce de nossas costumeiras hipocrisias sociais. Todos, menos os viajantes como eu, sabem que aqui não é um hotel. Ainda assim fiquei, pois, era a metade do preço de um hotel convencional. Na América latina também os motéis podem ser mais baratos. Apenas alguns minutos foram suficientes para que eu dissesse a mim mesmo, não gosto desse ambiente e acrescentei: por que estou sempre voltando a minha infância? Alguns meses antes de iniciar a viagem comentei com um frade que é psicólogo que quando éramos crianças, devido ao trabalho de minha mãe, estávamos constantemente mudando, sempre em cidades diferentes. E lembro que comentei com o frade que apesar de não gostar daquelas mudanças eu tinha a impressão que com a viagem estava escolhendo um estilo de vida que de certa forma faria com que eu reproduzisse o que vivi em minha infância.

Ontem, apenas alguns minutos após me sentir desconfortável com aquela atmosfera ao meu redor, percebi duas coisas importantes. A primeira foi que ao visitar aquelas memórias da infância, a rejeição a elas não vieram delas em si, mas da leitura que fiz ao longo dos anos dessas vivências. Quando era criança eu não achava ruim estar em um cabaré. Eu estava apenas visitando minha mãe em seu trabalho e amava quando os amigos dela me pagavam refrigerantes ou quando me davam fichas para tocar as músicas em uma máquina. Nós, minha irmã e eu saíamos na metade da tarde, que era quando começavam a chegar mais amigos de minha mãe. Era assim que eu via tudo isso. Foi somente como jovem e adulto, já “contaminado” por rótulos e preconceitos, que eu disse que não gostava daqueles lugares. Minha percepção e sensação de desgosto e desaprovação não provinha da experiência em si, mas de uma leitura preconceituosa posterior. Com isso aprendi que se pode ter diferentes leituras sobre um fato do passado e que interpretações compassivas e amorosas despertam em nós sentimentos de unidade e comunhão, enquanto as interpretações de discriminação são disjuntivas e geram uma falsa percepção de um eu bom e outro mau.

Vamos ao segundo insight. Ontem, uns trinta minutos depois de minha chegada, fui dormir. Quando acordei, a maioria dos que estavam no salão queriam tirar fotos comigo, pois haviam dito a eles que o brasileiro que estava fazendo uma volta ao mundo a pé e havia aparecido na TV estava hospedado ali. Um rapaz me chamou para tomar cerveja, eu recusei agradecendo, pois, já estava com mate feito no quarto. Ele então insistiu para que eu aceitasse cinco mil francos para pagar minha hospedagem. Aceitei, agradeci mais uma vez e pensei, mais uma das cenas de minha infância se repetindo: estou recebendo dinheiro de um dos amigos de minha mãe. Até aí nada de novo.

O segundo insight veio quando me aproximei de duas jovens que pareciam um pouco deslocadas. Primeiramente supus que assim estavam porque eram novatas, talvez fossem os primeiros dias na profissão. No entanto, ao me aproximar vi que as gurias não entendiam nada do que estava sendo falado no local. Eram nigerianas, não estavam familiarizadas com o idioma da Costa do Marfim. Presumo estarem na casa para atender os clientes ganenses, visto que estamos a poucos quilômetros da fronteira com a Gana, país anglófono.

 Já ouvi muitas vezes que com muito clientes as prostitutas atuam como psicólogas, escutam suas queixas e lhes animam em suas esperanças. Ontem, senti nitidamente que fui eu que desempenhei esse papel enquanto conversava com as nigerianas. E foi então que percebi que não é verdade que estou preso no loop de minha infância. O Marcelo que ontem falava com elas não é aquela criança do passado. Aquele que me deu cinco mil francos também não tem nenhuma relação com aqueles que me davam dinheiro para comprar refrigerante. Não creio em absoluto que haja uma missão misteriosa ou um significado místico que explique minha presença nesses lugares. E pouco me interessa se há ou não fatores inconscientes. O que me importa é o modo como respondo ou atuo nós lugares em que estou. O Marcelo de hoje escolheu responder com carinho, amor e empatia as circunstâncias que se lhe apresentam. Nem sempre consigo, mas ao menos esta é minha intenção. Quando percebi o bem que estava fazendo para aquelas meninas, também vi que outro amigo frade deveria reformular sua tese. Durante meu noviciado ela dizia: um capuchinho pode ter diferentes profissões, exceto porteiro de cabaré. Qualquer lugar é lugar para semear o bem. E como disse Jesus que as prostitutas entrarão no céu primeiro do que muitos que se julgam como muito religiosos, suponho que é melhor estar mais próximo delas do que destes.

A cabra da independência

Estava em Dugal, um vilarejo de Guiné Bissal. Era a festa de 50 anos de independência do país, mas não havia comemorações porque não havia dinheiro, nem trabalho ou comida e nem sequer a ideia de que algum dia isso iria mudar. Levantavam para ficar na frente da casa tomando chá extremamente doce e saudar os que passavam pela estrada. Quando a noite chegava dormiam sabendo que no próximo dia tudo seria igual ao anterior. Para iludir-me pensando que por alguns dias vivi como eles viviam sentei-me à frente da casa e deixei que minha mente macaco me levasse para lugar algum. De repente, uma cabra rompeu o fio da monotonia de Dugal. Era puxada com força e empacava como burro, dando a entender que, como eu, não compreendia o porquê de toda aquela agitação. Mais assustado do que o animal estava o jovem que o havia roubado. Dele o medo saltava pelos olhos. Era trazido por um autoproclamado comitê de segurança que espontaneamente se havia formado no instante em que se percebeu que a cabra havia sido furtada. Pareciam caçadores que celebravam a captura da presa. Contaram-me com entusiasmo que houve perseguição, corrida, tentativa de fuga e resistência à prisão como em um filme de ação de Hollywood, mas que o acusado havia se entregado diante de um blefe de filme de comédia. Um dos membros da comissão de segurança simulou ter uma arma escondida no bolso, mas era uma espiga de milho que estava sendo comida no momento do anúncio do furto da cabra.Em meio a tantos gritos e manifestações exaltadas proferidas em balatanta, etnia predominante em Dugal, temi presenciar algum tipo de condenação feita pela massa de gente que se reunia em torno daquele rapazinho. Receberia chicotadas? Teria a mão decepada? Seria queimado vivo em fogueira de pneus? Eu não sabia se poderia intervir, mas ainda assim tentei. Às vezes, perguntas tolas são como música desligada abruptamente em um baile, inevitavelmente, forçam uma parada coletiva. E, talvez, inconscientemente, foi isso que pretendi ao perguntar por que não chamavam a polícia. Não, o grupo não parou e riu de mim como em uma cena de desenhos animados. Apenas Alsau, meu anfitrião, que também fazia parte da comissão e teve seu braço mordido pelo ladrão respondeu pacientemente que a polícia não se deslocaria por um caso tão simples. A patrulha que diariamente ficava a uns duzentos metros daquele local pertencia ao departamento rodoviário e, portanto, não podia interferir. Tinha como única função parar os carros velhos naquela estrada de chão esburacada e verificar se os impostos haviam sido pagos e pegar propinas para alimentar a família. Os sábios e anciãos do vilarejo foram chamados. Os que portavam o gorro vermelho podiam opinar e sugerir, os demais deveriam apenas ouvir. Parecia uma cena bíblica do tempo dos juízes. Foi formado o comitê de justiça. Vítima e acusado foram postos frente a frente. O pai do suposto ladrão estava lá para acatar as decisões do comitê e garantir que o filho cumpriria a pena. Já havia escurecido. Depois de horas de discussão onde todos discutiam com todos e com ninguém a sentença foi proclamada. A cabra, obviamente, voltou para o seu dono que até o fim do ano deverá receber da família do ladrão outra cabra para compensar o stress vivido em plena festa da independência. Um porco servirá como honorário para a comissão de segurança festejar o êxito de sua missão. E eu testemunho e vivo essa história para partilhar com vocês. Do jeito balanta a justiça foi feita. Não sei se a cabra está feliz mas, seguramente, não está independente, pois, como diz meu amigo Serginho, em terra que sofre gente, bicho sofre muito mais. E onde há sofrimento não há independência.

Por qué soy el único latino en la foto ?

Podría publicar esta foto aquí con el siguiente título: conociendo a otros viajeros en las montañas de Marruecos. Pero mi sentido crítico no me lo permite, es necesario hacer algunas observaciones: en la foto hay dos parejas de franceses, dos chicas de Canadá y un latinoamericano. ¿Eso te dice algo? Ya puedo adelantar que, como latino, soy prácticamente una excepción entre otros viajeros. Podría publicar otras fotos mías con viajeros que encontré en el camino y se repetiría el escenario, es decir, casi todos europeos o del norte del continente americano. En casi dos años de caminata encontré muy pocos latinos viajando, incluso cuando estaba en América Latina, ni negros ni personas trans u otros grupos históricamente puestos en condiciones minoritarias. Sé que ya hice esta reflexión aquí, pero esto es algo que me sigue preocupando. Algunas conclusiones: 1) Este es un espacio al que solo tiene acceso un determinado grupo y hay que decir que es el grupo el que tiene acceso a todos los demás derechos básicos. Por lo tanto, viajar sigue siendo el privilegio de un solo grupo y no un derecho. ¿Y por qué debería ser un derecho? Mi argumento podría enumerar los beneficios culturales, emocionales y sociales que proporciona viajar. Sin embargo, creo que no es necesario seguir este camino, ya que la propia ONU, en la Declaración Universal de los Derechos Humanos, firmada en 1948, ya sitúa el derecho de ir y venir como un derecho que debe ser garantizado a todas las personas. Pero en la práctica, sabemos que no es más que un ideal. Cuando un europeo, un australiano o un estadounidense viene a un país pobre, no se le pide que muestre cuánto dinero tiene en la billetera, ni se le pregunta por su profesión o si tiene billete de vuelta a su país. Su pasaporte es automáticamente un certificado de su idoneidad y una garantía de que escucharás de parte del agente de inmigración, acompañada de una amplia sonrisa, la frase: “sea bienvenido a nuestro país”. Esto me hace pensar que el derecho universal de ir y venir no es tan universal. Y aún, sólo los blancos ricos se encajan en la categoría humana; 2) viajar, para quien histórica y socialmente sufrió un proceso de marginación, es prácticamente un acto de transgresión y resistencia. Cuando viajo digo que no estoy de acuerdo con que mi vida tenga que estar marcada todo el tiempo por un trabajo (mal) pagado. Soy consciente de que aparecer en esta foto significa superar una barrera impuesta por el sistema político y económico actual. Al estar ahí estoy diciendo que ese espacio también debe ser ocupado por latinos y latinas, hombres y mujeres negros, personas empobrecidas y/o personas discriminadas por su nacionalidad. Pero eso no es suficiente, ya que ninguna acción aislada resulta en transformaciones sociales . Es necesario que nos organicemos colectivamente para tener acceso al pan y al arte, a la salud y a los sueños, a la educación y también a los viajes. Se podría argumentar que tenemos tantas otras preocupaciones y demandas, que son mucho más urgentes, ¿por qué hablar de viajes? Creo que no estoy hablando estrictamente de viajes, sino de las marcas de la desigualdad social en nuestras vidas y los espacios y realidades en los que no se nos permite estar como resultado de esta desigualdad.

Pourquoi suis-je le seul latino sur cette photo ?

Je pourrais poster cette photo ici avec la légende suivante : une belle rencontre avec d’autres voyageurs dans les montagnes du Maroc. Mais mon sens critique ne me le permet pas, il faut faire quelques considérations : sur la photo se trouvent deux couples de français, deux filles du Canada et un latino-américain. Cela vous dit quelque chose ? Je peux déjà anticiper qu’en tant que latino, je suis pratiquement une exception parmi les autres voyageurs. Je pourrais poster d’autres photos de moi avec des voyageurs rencontrés en chemin et le scénario se répéterait, c’est-à-dire presque tous européens ou du nord du continent américain. En près de deux ans de marche, j’ai trouvé très peu de Latinos voyageant, même lorsque j’étais en Amérique latine, et pas de noirs et pas de personnes trans ou d’autres groupes historiquement mis dans conditions minoritaires. Je sais que j’ai déjà fait cette réflexion ici, mais c’est quelque chose qui ne cesse de m’inquiéter. Voici quelques conclusions :1) Le voyage c’est un espace auquel seul un certain groupe a accès et il faut dire que c’est le groupe qui a accès à tous les autres droits fondamentaux. Par conséquent, voyager reste le privilège d’un seul groupe et non un droit. Et pourquoi devrait-il être un droit? Mon argument pourrait énumérer les avantages culturels, émotionnels et sociaux que procurent les voyages. Cependant, je crois qu’il n’est pas nécessaire de suivre cette voie, puisque l’ONU elle-même, dans la Déclaration universelle des droits humains, signée en 1948, place déjà le droit d’aller et venir comme un droit qui doit être garanti à tous. Mais en pratique, nous savons qu’il ne s’agit que d’un idéal. Lorsqu’un européen, un australien ou quelqu’un qui vient des États-Unis arrive dans un pays pauvre, on ne lui demande pas de montrer combien d’argent il a dans son portefeuille, on ne lui demande pas non plus sa profession ou s’il a un billet de retour à son pays. Son passeport est automatiquement un certificat de son honnêteté et une garantie qu’il va entendre de la part de l’agent d’immigration, accompagnée d’un large sourire, la phrase : « soyez le bienvenu dans notre pays ».Cela me fait penser que le droit universel d’aller et venir n’est pas si universel. De plus, seuls les blancs riches rentrent dans la catégorie humaine ; 2) Ainsi, voyager, pour quelqu’un qui a subi historiquement et socialement un processus de marginalisation, est pratiquement un acte de transgression et de résistance. Par le fait de voyager, je dis que je ne suis pas d’accord que ma vie doive être marquée en permanence par un travail (mal) rémunéré. Je suis conscient qu’apparaître sur cette photo signifie surmonter une barrière imposée par le système politique et économique actuel. En y étant , je dis que cet espace doit aussi être occupé par des gens de l’Amérique latine, des hommes et des femmes noirs, des personnes démunies et/ou des personnes discriminées en raison de leur nationalité. Mais cela ne suffit pas, car aucune action isolée ne débouche sur des transformations sociales. Il faut que nous nous organisions collectivement pour avoir accès au pain et à l’art, à la santé et au rêve, à l’éducation et aussi aux voyages. On pourrait dire que nous avons tellement d’autres préoccupations et demandes, qui sont tellement plus urgentes, pourquoi parler de voyage ? Je pense que je ne parle pas strictement de voyages, mais des marques de l’inégalité sociale dans nos vies et des espaces et réalités dans lesquels nous ne sommes pas autorisés à être en raison de cette inégalité.

Por que sou o único latino na foto?

Eu poderia postar essa foto aqui com a seguinte legenda: encontro com outros viajantes nas montanhas do Marrocos. Mas meu senso crítico não me permite, é preciso antes fazer algumas considerações: na foto estão dois casais franceses, duas meninas do Canadá e um latino americano. Isso diz alguma coisa para vocês? Já posso antecipar, que como latino, sou praticamente uma exceção entre outros viajantes. Eu poderia postar outras fotos minhas com viajantes que encontrei no caminho e o cenário iria se repetir, ou seja, quase todos europeus ou do norte do continente americano. Em quase dois anos de caminhada encontrei pouquíssimos latinos viajando, inclusive quando estava na América Latina, e nenhuma pessoa negra e nenhuma pessoa trans ou de outros grupos historicamente minorizados. Eu sei que já fiz essa reflexão por aqui, mas isso é algo que continua me inquietando. Algumas conclusões: 1) Esse é um espaço que somente um determinado grupo tem acesso e deve-se dizer que é o grupo que tem acesso a todos os outros direitos básicos. Portanto, viagens continuam sendo privilégios de apenas um grupo e não um direito. E por que deveria ser um direito? Minha argumentação poderia elencar os benefícios culturais, emocionais e sociais que viagens proporcionam. No entanto, creio não ser necessário seguir por esse caminho, pois a a própria ONU, na declaração universal dos direitos humanos, assinada em 1948, já coloca o direito de ir e vir como um direito que deve ser garantido a todas as pessoas. Mas, na prática, sabemos que não passa de um ideal. Quando um europeu, um australiano ou um estadunidense vêm para algum país pobre não lhe pedem para que mostre quanto de dinheiro tem na carteira, nem lhe é perguntado sobre sua profissão ou se tem uma passagem de retorno ao seu país. Seu passaporte é automaticamente um atestado de sua idoneidade e garantia de que escutará do agente de imigração, acompanhado de um largo sorriso, a frase: “seja bem- vindo ao nosso país”. Isso me faz pensar que direito universal de ir e vir não é tão universal. E mais, somente brancos ricos se encaixam na categoria humanos; 2) viajar, para alguém que historicamente e socialmente sofreu um processo de marginalização, é praticamente um ato de transgressão e resistência. Ao viajar, estou dizendo que não concordo que minha vida tenha que ser marcada o tempo todo por um trabalho (mal) remunerado. Eu estou consciente de que aparecer nessa foto significa ultrapassar uma barreira imposta pelo sistema político e econômico vigente. Ao estar alí, estou dizendo que esse espaço também deve ser ocupado por latinos e latinas, negros e negras, pessoas empobrecidas e ou discriminadas por sua nacionalidade, mas isso não basta, pois nenhuma ação isolada resulta em transformação social. É preciso que coletivamente nos organizemos para termos acesso a pão e arte, saúde e sonhos, educação e também à viagens. Alguém poderia argumentar que temos tantas outras preocupações e demandas, que são tão mais urgentes, por que falar em viagem? Penso que não estou falando estritamente sobre viagem, mas sobre as marcas da desigualdade social em nossas vidas e os espaços e realidades que não nos é concedido estar como consequência dessa desigualdade.

TODA DECISÃO IMPLICA UMA CISÃO

Queridas amigas e queridos amigos!

Vocês devem ter acompanhado por aqui que retomei o “ Caminho de Aline”, ou seja, segue o projeto de fazer uma volta ao mundo a pé por aproximadamente mais 8 anos. De coração aberto, quero partilhar com vocês algumas consequências dessa decisão.  Para tanto, terei que voltar um pouco no tempo e, como a história não é curta, convido vocês a pegarem um chimarrão ou um chazinho e me acompanharem nessa travessia.

Em 1994, com dezesseis anos de idade, eu estava sozinho sem água, luz e comida. Foi então que a dona Eva, uma vizinha, que de vez em quando, partilhava comigo um pouco de alimento, sugeriu que eu fosse padre, pois assim, segundo ela, eu teria comida, estudo e casa.  Alguns meses depois, de uma freira idosa recebi o livro “o Francisco que está em você” do frei capuchinho, Wilson João Sperandio. Ao ler aquelas páginas, senti que aquele era um homem livre e que, eu, apesar de viver em completa miséria, sentia-me preso a tantas coisas, mas  desejei ser livre como Francisco.

Já faz vinte e seis anos que  passei a conviver com os freis capuchinhos e, praticamente, tudo no que acredito , o modo como me relaciono com as pessoas,  os valores que defendo e as escolhas que faço são resultados dessa vivência.  Para mim, ser frade, basicamente se resume em ver os demais seres como meus irmãos. Por isso, ofereço-me às pessoas que encontro em meu caminho como um verdadeiro irmão. E posso dizer a vocês, de todo o meu coração, que gosto de viver assim.

O desejo de caminhar pelo mundo, direta ou indiretamente têm duas fontes: minha história familiar, pois durante minha infância mudávamos constantemente com a esperança de que a vida seria melhor e, a formação que recebi ao longo de todo esse tempo, também foi um estímulo para tal. Na vida religiosa me foi falado que Francisco de Assis, por amor a Jesus, que era pobre e itinerante, queria que os frades vivessem como peregrinos e forasteiros. E foi no noviciado, que nosso mestre nos incentivou a fazer a primeira experiência radical de itinerância. Caminhamos, um confrade e eu por vários dias, levando apenas a roupa do corpo, o breviário e um evangelho. Naquela ocasião, sujos e cansados, depois de caminharmos por um tempo significativo, fomos à missa e em seguida, fomos à casa paroquial solicitar um lugar para dormir. Uma senhora que havia nos visto na missa, perguntou: vocês são franciscanos? Como ela poderia ter descoberto isso, se não estávamos usando hábito e nenhum outro sinal religioso? Sua resposta foi direta e nos encheu de alegria: “vocês estavam rezando e são pobres e alegres”.

Ao longo de minha formação, várias oportunidades me foram proporcionadas para viver a itinerância, mas por mais despojamentos que essas experiências provocassem, eu sentia ainda  exercer minha missão em um lugar privilegiado, como alguém que tinha algo de material ou intelectual para dar. E por mais que eu procurasse estabelecer uma relação igualitária com as pessoas, a própria imagem de frei presente no imaginário delas, de ser uma pessoa especial ou uma figura de respeito, as tornava distantes de mim de certa forma.                                         

 Ao caminhar pela América Latina, senti que eu exercia a dimensão fraterna e minha própria vocação de um outro lugar. Ao precisar de um lugar para dormir ou um prato de comida ou ainda, em um simples encontro com alguém na rua, eu oferecia uma palavra de esperança e ânimo, um sorriso e assim me sentia frei, irmão de todos. 

Por tudo isso, eu não vejo essa longa caminhada que empreendi, como uma cisão com o projeto que iniciei a 26 anos, muito pelo contrário, entendo como uma radicalização e continuidade, mesmo que não possa ter respaldo institucional. Alguns irmãos deixam a ordem porque querem constituir família, ter bens ou porque não conseguem viver em fraternidade. Eu amo estar com os frades e com o povo. E realmente gostaria de caminhar com outros irmãos, mas não é porque eu gosto de viver dessa forma que deveria exigir o mesmo a quem quer que seja. E tampouco penso que os demais são menos frades por não viverem a itinerância do modo que a vivo. 

Eu vejo essa longa peregrinação por diversos países, como mais uma etapa de formação para que eu seja um melhor irmão, uma pessoa melhor, mais amorosa, mais compassiva, mais desapegada, livre de todo egocentrismo, capacitando-me para mais compreender que ser compreendido e amar do que ser amado e em todas as circunstâncias, ser um instrumento de paz tal como rezei por todos esses anos.

Estou deixando a Ordem em termos institucionais, pois a estrutura não prevê e, atualmente, não comporta um estilo de vida como o que eu estou vivendo. Eu compreendo essas consequências e as aceito com serenidade. Ser frade não é uma função ou tampouco um título, mas um jeito de ser e viver. E tendo presente que ser irmão está tão encarnado em meu modo de ser e é resultado de toda a formação que recebi em mais de duas décadas e meia com os freis, não creio que deixo de ser um irmão, ao solicitar desligamento da ordem. Deixo de ser chamado de frei, deixo de usar o hábito, mas não deixo de ver cada um como irmão e irmã e de me oferecer como irmão. Devo admitir que deixar esses elementos simbólicos causam em mim certa dor pelo apreço e amor que tenho a eles e, talvez, pelo apego que desenvolvi à imagem de ser frei, no entanto, encaro esse momento, como mais um gesto de despojamento inerente à vocação franciscana.

Meu vínculo afetivo com os frades permanece. Pois não é um documento ou uma instituição que nos torna irmãos, mas os laços de afeto, diálogo e compreensão mútua ,enfim,tudo o que  fomos desenvolvendo ao longo desses anos.

De acordo com o projeto inicial, estão previstos aproximadamente mais oito anos de caminhada. Depois disso, seria meu desejo retornar à província, caso me fosse permitido?De acordo com o modo que sinto e penso hoje, diria que sim. Contudo, para ser honesto, não sei como estarei vendo a vida depois dessa experiência. Posso responder por hoje, mas não pela pessoa que ainda não sou. 

Meu profundo e sincero agradecimento por todo carinho, compreensão, atenção, oportunidades e aprendizados que recebi e recebo continuamente dos frades, dos amigos e amigas de todas as comunidades por onde passei. Eu, definitivamente, não seria quem sou se não tivesse recebido o amor, formação e valores que os frades  e o povo me transmitiram ao longo desses 26 anos. Também apresento o meu sincero pedido de perdão a quem eu possa ter magoado, nas fraternidades, pastorais e comunidades.  Muito obrigado pelo carinho dos frades, da família e do povo querido de nossas comunidades. Um bom caminho para todas e todos.

La historia de Miguel

Era casi la una de la tarde cuando salí de la comunidad de Chota, un hospedaje comunitario afro andino dirigido por mujeres de diferentes edades que con orgullo y determinación  me explicaran la importancia de este lugar como un espacio de resistencia y preservación de la cultura.

Solo faltaban unos días para llegar a la frontera entre Ecuador y Colombia. Ya había notado que docenas o quizás cientos de refugiados venezolanos y venezolanas caminaban por esta región hacia Perú. Lo único que recibían era la indiferencia de la gente.  Porque eran muchísimos, porque pasan todos los días, y al pasar todos los días se tornan invisibles a aquellos que viven cerca de la carretera.

Un grupo de ellos pasó cerca de mí. Uno de ellos, sin ningún saludo, porque el hambre no requiere formalidades y amabilidad, me preguntó si tenía algo para brindarles, algo que fuese salado, porque lo que generalmente les dan es pan. No lo pensé dos veces. Les pedí que se sentaran en la banquina de la carretera conmigo mientras preparaba el almuerzo. Mostré la olla, que es chiquita, lo que significaba que tendría que cocinar porciones pequeñas. Hice la misma medida tres veces.

Mientras unos iban comiendo, seguíamos preparando más almuerzo y hablando sobre lo que vivíamos en el camino, cosas comunes porque ninguno de los temas era llevado a la profundidad que merecía. Algunos no decían nada, mantenían la cabeza baja y los ojos cerrados, el cansancio no permitía ninguna socialización.

Noté que los primeros que comían, continuaban observando, casi hipnóticamente, cada cucharada que sus compañeros se llevaban a la boca. Aún continuaban con hambre, pensé, y les ofrecí pan con mermelada. La bolsa de pan fue devorada con avidez. Eso me molestó un poco porque no pensaron en sus compañeros ni en mí. Rápidamente me di cuenta de que el hambre tampoco piensa. Antes de despedirnos, nos abrazamos y tomamos fotos: íbamos en direcciones opuestas.

Unos kilómetros más adelante busqué un paquete de galletas que llevaba en mi mochila. No lo encontré. Mis amigos fueron rápidos. De nuevo me sentí irritado y molestado por esa situación, pensé que fueron desagradecidos. De pronto pensé que se llevarían también la cámara GoPro que estaba en el mismo compartimento. No fue así y quedó en evidencia que lo que los impulsó fue el hambre. Quedé triste porque sé que la situación de este grupo no es una excepción, así son todos los que encuentro en la ruta.

Entre ellos estaba un colombiano que fue designado por el grupo para saltar el muro de una casa que parecía abandonada y así llenar una botella con agua que me sirvió para cocinar.

Dos semanas después, ya en Colombia, debido a los robos que estaban ocurriendo, me advierten que redoble mi atención con aquellos que caminan por la carretera.

En un día soleado, en medio de las montañas de Nariño vi a alguien que me indicaba que parara. Mi corazón se aceleró. Temí ser asaltado. Evalué rápidamente la situación: no serviría de nada correr; el camino estaba prácticamente desierto, lo que permitiría al presunto asaltante correr detrás de mí. Decidí seguir adelante. Cuando me acerqué, él dijo:

-“ Brasileño, caminas muy rápido, ¡ya estás aquí!”

– ¿De dónde me conoces? Pregunté, aún con sospechas.

– “Soy el colombiano, ¿recuerdas que nos preparaste comida?”

Recordé. Pero él estaba prácticamente irreconocible. Tenía la cara muy golpeada, un ojo morado, un brazo vendado y caminaba con dificultad. Todo esto, según él, fue el resultado de una pelea. Intentaron robarlo, explicó. Sospeché que la marihuana fue la causa de la pelea.

Pregunté si me robaron las galletas. – Tal vez los otros, respondió rápidamente. No me pidió nada, pero le di algunas manzanas y seguí mi camino.

Al día siguiente lo encontré nuevamente. Había dormido en el campo. Esta vez hablé más con él. Se llama Miguel. Tiene cuatro hermanos y dos hijas. Hace mucho que no los ve. Se siente abandonado por su familia, por Dios y por el mundo.

– “Si alguien me mata, nadie me extrañará”.

No dije nada. Lo escuché y él continuó:

– “No fui siempre así. Era policía, siempre con una buena pinta, me tiraba a todas las “churras” que se cruzaban por mi camino”.

Conversando un poco más, me di cuenta de que no hubo forma de haber sido policía. Miguel ni siquiera sabía leer ni escribir. Esto, tal vez, era una fantasía para tratar de soportar su verdadera y dura realidad. Cuando tenía diez años, su madre fue arrestada por tráfico de drogas. Creció solo, yendo de un lado a otro e incluso hoy no está seguro de a dónde va. Le pregunté por sus sueños. No tenía.

Me despedí de Miguel.

Creo que caminar sin sueños es caminar hacia la nada. ¿Pero qué le queda a Miguel sino caminar? Me molesto un poco cuando escucho discursos motivadores que sugieren que las personas tienen que atrapar sus sueños. Lo que los autores de estos discursos no saben es que la miseria y la desigualdad son devoradoras de sueños.

A história do Miguel

Era quase uma hora da tarde quando havia deixado a comunidade de Chota, uma hospedaria comunitária afro-andina administrada por mulheres de diferentes idades que com orgulho e determinação me explicaram a importância desse lugar como um espaço de resistência e preservação da cultura.

                Faltavam poucos dias para chegar à fronteira entre Equador e Colômbia. Eu já havia notado que dezenas ou centenas de refugiados venezuelanos e venezuelanas caminhavam por essa região rumo ao Peru. A única coisa que encontravam em seu trajeto era a indiferença das pessoas. Porque eram muitos, porque passavam todos os dias e, por isso, se tornavam invisíveis àqueles que vivem próximo à rodovia.

                Um grupo deles passou por mim. Alguém do grupo, sem nenhuma saudação, porque a fome dispensa formalidades e gentilezas, pergunta se tenho algo com sal para comerem, pois o que ganham, geralmente, é pão.  Não penso duas vezes. Peço para que se sentem comigo no acostamento, enquanto lhes preparo o almoço. Mostro a panela, que é pequena, o que significava que teria de cozinhar em pequenas porções. Fiz três vezes a mesma medida.

                Enquanto uns comiam, seguíamos preparando mais almoço e falando do que vivíamos na estrada, coisas corriqueiras, nada era muito aprofundado. Alguns não diziam nada, mantinham a cabeça baixa e os olhos fechados, o cansaço impedia qualquer socialização.

                Observo que os primeiros que comeram seguem acompanhando com o olhar, quase que hipnoticamente, cada colherada que os companheiros levam a boca. Seguem com fome, penso eu, e ofereço pão com geleia. Rapidamente o pacote de pão é devorado. Fico incomodado, pois não pensaram em deixar um pouco para seus companheiros ou para mim. Rapidamente me dou conta que a fome também não pensa. Antes da despedida, abraçamo-nos e tiramos fotos. Seguirmos em direção opostas.

                Adiante, uns dez quilômetros, meu corpo pede para beliscar as bolachas que levava na mochila. Não as encontro. Meus amigos foram rápidos. Outra vez fico incomodado. Penso que foram ingratos. Suponho que a câmara GoPro que estava no mesmo compartimento tenha sido levada. Não foi e fica evidente que o que os movia era a fome. Fico triste, pois sei que a situação desse grupo não é uma exceção, assim estão todos e todas que encontro pelo caminho.

                Entre eles havia um colombiano designado pelo grupo para pular o muro de uma casa, que parecia abandonada, para encher uma garrafa com água que utilizei para cozinhar.

                Duas semanas após, já na Colômbia, devido aos assaltos que ocorriam, sou advertido a redobrar a atenção com os que caminham na rodovia.

                Em um dia ensolarado, em meio às montanhas de Nariño, vejo alguém sinalizando para que eu pare. Meu coração dispara. Temo ser atacado. Rapidamente avalio a situação: nada adiantaria correr; o caminho é praticamente deserto, o que permitiria que o suposto assaltante iria correr atrás de mim. Decido seguir em frente. Quando me aproximo, ele diz:

– Brasileiro, tu caminhas muito rápido, já estás aqui!

– De onde tu me conheces? – pergunto ainda desconfiado.

– Eu sou o colombiano, lembras que preparastes comida para nós?

                Lembrei. Mas ele estava praticamente irreconhecível. Tinha o rosto bastante machucado, um olho roxo,  braço enfaixado e caminhava com dificuldade. Tudo isso, segundo ele, foi resultado de um briga. Tentaram rouba-lo, explica. Desconfio que maconha tenha sido a causa da briga.

                Pergunto se eles haviam roubado minhas bolachas – talvez os outros, me responde rapidamente. Não me pede nada, mas lhe dou algumas maças e sigo meu caminho.

                No dia seguinte, eu o encontro novamente. Havia dormido pelos campos. Dessa vez converso mais longamente com ele. Seu nome é Miguel. Tem quatro irmãos e duas filhas. Faz muito tempo que não os vê. Sente-se abandonado pela família, por Deus e pelo mundo.

                – Se alguém me matar ninguém sentirá a minha falta, desabafa.

Não digo nada. Escuto-o e ele prossegue:

                – Nem sempre foi assim. Eu já fui policial, “vestia umas roupas legal” e pegava todas as mulheres que passavam por mim.

                Um pouco mais de conversa, percebo que não há a menor condição para que ele tenha sido policial. Miguel sequer foi alfabetizado. Essa, talvez, seja uma fantasia para tentar suportar sua verdadeira e dura realidade. Quando ele tinha dez anos, a mãe foi presa por tráfico de drogas. Cresceu sozinho, indo de um lado para o outro e até hoje não sabe ao certo para onde está indo. Pergunto sobre seus sonhos. Não tem.

                Despeço-me do Miguel.

                Penso que caminhar sem sonhos é caminhar rumo ao nada. Mas o que resta ao Miguel, senão caminhar?  Fico um pouco perturbado quando escuto discursos motivacionais sugerindo que as pessoas sigam seus sonhos. O que os autores desses discursos não sabem é que a miséria e a desigualdade são devoradoras de sonhos.

Pedido de perdão

Tua casa foi queimada. Tua plantação foi destruída. Tua comida era roubada e o perigo vinha de todos lados, às vezes, tinha cara de oficialidade e outras vezes vinha com discurso de esperança, mas era sempre dor e destruição.   A morte espedaçava teus filhos. Não foi uma nem duas vezes, foram anos.

Sem conhecer tua história recente eu te julguei.  Pensei: é um povo fechado e desconfiado.  Por alguns momentos,  me pareceu que eras insensível às minhas necessidades. Eu também seria assim. Se eu tivesse passado por tudo o que passastes eu também seria assim. Eu teria pavor do desconhecido. Te peço perdão comunidade serrana do Peru por, em meu silêncio, ter te julgado.

Estou convencido de que é imperativo a um viajante conhecer a história do povo que o acolhe. Obrigado Alejandro de Sullana pelo excelente livro “Memorias de un soldado desconocido” de Lurgio Gavilan Sanchez, isso permitiu que eu entendesse um pouquinho do sofrimento desse povo durante os conflitos que matou mais de 80 mil pessoas na década de oitenta e noventa no Peru.

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