Sabemos que a atual configuração geográfica da África foi feita pelos colonizadores, ignorando completamente critérios étnicos, religiosos, culturais e sociais presentes no continente e que, historicamente, demarcavam diferenças. No entanto, ainda que sejam visíveis as fronteiras impostas por colonizadores, são ainda mais fortes e expressivos os elos e raízes culturais e eles permanecem. Idiomas e dialeto étnicos explicitam esse aspecto. A primeira vez que notei isso foi quando estava em um vilarejo da Gambia que fazia fronteira com o Senegal. Fui recebido por uma senhora que era a chefe do local. Comigo falava em inglês, o idioma dos ex-colonizadores da Gambia. Seu esposo, contudo, comigo falava em francês, pois havia nascido no vilarejo vizinho que fazia parte do território senegalês, antiga colônia francesa. Ela não falava em francês e ele não falava em inglês. Como então se entendiam? Apesar de terem nascidos em países diferentes, ambos pertenciam a mesma etnia, falavam, portanto, o mesmo dialeto. Tenho visto esse fenômeno em quase todos os países aqui da África. As línguas europeias são utilizadas apenas quando precisam se comunicar com um estrangeiro.
O mundo além do meu olhar
Estou fazendo uma volta ao mundo a pé e já percorri 17 países. Estou acostumado que me perguntem qual o país que mais gostei e qual país que não gostei. No entanto, creio que essas são perguntas que limitam nossa maneira de ver a vida. Se eu respondesse de acordo com essa linha de pensamento, seria possível supor que os países que gostei estão associados a experiências positivas que tive naquele lugar e que praticamente tudo o que vivi lá foi bom. Por outro lado, teria que dizer que os países que não gostei me proporcionaram experiências desagradáveis durante toda minha estadia. A vida não pode ser dividida simplesmente em bom ou mau e nada é tão constante assim. Essa classificação simplista e dualista ignora as nuances da vida e o quanto nossa percepção é contingente, ou seja, varia conforme as circunstâncias que estão em constante movimento. Além disso, o mundo não gira em torno do meu umbigo. Embora minha opinião possa ser importante e mereça ser respeitada, ela é relativa, ao poder mudar completamente se for comparada com outra experiência. Um exemplo: após ter vivido por quase quatro anos na Europa, quando retornei a Porto Alegre me pareceu que as ruas de minha cidade natal eram muito sujas. Dois anos depois eu retornava à mesma cidade após ter vivido quase um ano no Haiti e recordo de ter dito: vejam, em Porto Alegre tudo é limpinho!
Há ainda outro limitante nessas perguntas fechadas. Se a pessoa nos parece digna de credibilidade ou se temos um vínculo afetivo com quem as responde temos a tendência de cristalizar suas respostas. Se disser a vocês, por exemplo, que tive experiências negativas em um determinado país, vocês poderão facilmente concluir que aquele país é ruim e permanecer por um longo tempo com essa imagem do país. Assim, ignoramos que foi ruim apenas para mim, para tantos outros ou outras que passaram por aquele local a experiência foi certamente positiva. E foi ruim apenas nesse momento histórico. É provável que se retornar no mesmo lugar mesmo alguns meses depois minha percepção seja completamente distinta.
Creio que conhecer o contexto, especialmente, no que se refere a pontos de vistas negativos sobre pessoas, lugares ou situações nos ajuda a sermos mais empáticos e evitar julgamentos reducionistas. Permitam-me que eu lhes dê um exemplo. Enquanto percorria as estradas da Libéria comentei com alguém que eu não estava gostando daquele país porque por diversas vezes jovens tentaram tirar dinheiro de mim de maneira ilegal. Essa pessoa me explicou que esses jovens nasceram no período da guerra. Houve guerra civil na Libéria por mais de 20 anos. Durante a guerra, me explicava esse senhor, os valores são outros. Minha geração, disse ele, foi ensinada que não poderíamos pegar nada de ninguém. Essa geração, por sua vez, foi ensinada que deveria roubar para poder comer e sobreviver às barbáries da guerra, concluiu. Isso não significa, evidentemente, que eu aprove ou goste que me roube, mas me ajuda a compreendê-los e desejar que encontrem formas de superar essa formação que receberam e a ter outra visão sobre o país.
E mais uma vez, minha experiência não pode ser determinante para conceituar um país ou o que quer que seja como bom ou mau. Eu poderia, para exemplificar, dizer que o país que mais gostei aqui na África foi a Mauritânia porque as pessoas foram muito amáveis e acolhedoras para comigo. Isso poderia levá-los a concluir que a Mauritânia é um país excelente. Um rapaz senegalês que foi imigrante na Mauritânia me disse que detestou o país porque em várias circunstâncias foi alvo de discriminação racial. Diante desses dois relatos, o que vocês concluem, a Mauritânia é um bom lugar ou não? Como se pode ver, é coerente que digamos que não é nem bom e nem ruim, mas que simplesmente depende das circunstâncias, de um conjunto de condições e de um mundo pleno de subjetividades concernentes ao observador. Por a vida ser complexa, diversa e sempre mutável não cabe nas caixinhas de meus gostos e desgostos pessoais. E tampouco pode ser presa em concepções e conceitos dualistas.
Sim, eu posso dizer que gostei ou não gostei de um determinado país, mas devo estar consciente que isso não pode ser determinante para compreender esse local.
TODA DECISÃO IMPLICA UMA CISÃO
Queridas amigas e queridos amigos!
Vocês devem ter acompanhado por aqui que retomei o “ Caminho de Aline”, ou seja, segue o projeto de fazer uma volta ao mundo a pé por aproximadamente mais 8 anos. De coração aberto, quero partilhar com vocês algumas consequências dessa decisão. Para tanto, terei que voltar um pouco no tempo e, como a história não é curta, convido vocês a pegarem um chimarrão ou um chazinho e me acompanharem nessa travessia.
Em 1994, com dezesseis anos de idade, eu estava sozinho sem água, luz e comida. Foi então que a dona Eva, uma vizinha, que de vez em quando, partilhava comigo um pouco de alimento, sugeriu que eu fosse padre, pois assim, segundo ela, eu teria comida, estudo e casa. Alguns meses depois, de uma freira idosa recebi o livro “o Francisco que está em você” do frei capuchinho, Wilson João Sperandio. Ao ler aquelas páginas, senti que aquele era um homem livre e que, eu, apesar de viver em completa miséria, sentia-me preso a tantas coisas, mas desejei ser livre como Francisco.
Já faz vinte e seis anos que passei a conviver com os freis capuchinhos e, praticamente, tudo no que acredito , o modo como me relaciono com as pessoas, os valores que defendo e as escolhas que faço são resultados dessa vivência. Para mim, ser frade, basicamente se resume em ver os demais seres como meus irmãos. Por isso, ofereço-me às pessoas que encontro em meu caminho como um verdadeiro irmão. E posso dizer a vocês, de todo o meu coração, que gosto de viver assim.
O desejo de caminhar pelo mundo, direta ou indiretamente têm duas fontes: minha história familiar, pois durante minha infância mudávamos constantemente com a esperança de que a vida seria melhor e, a formação que recebi ao longo de todo esse tempo, também foi um estímulo para tal. Na vida religiosa me foi falado que Francisco de Assis, por amor a Jesus, que era pobre e itinerante, queria que os frades vivessem como peregrinos e forasteiros. E foi no noviciado, que nosso mestre nos incentivou a fazer a primeira experiência radical de itinerância. Caminhamos, um confrade e eu por vários dias, levando apenas a roupa do corpo, o breviário e um evangelho. Naquela ocasião, sujos e cansados, depois de caminharmos por um tempo significativo, fomos à missa e em seguida, fomos à casa paroquial solicitar um lugar para dormir. Uma senhora que havia nos visto na missa, perguntou: vocês são franciscanos? Como ela poderia ter descoberto isso, se não estávamos usando hábito e nenhum outro sinal religioso? Sua resposta foi direta e nos encheu de alegria: “vocês estavam rezando e são pobres e alegres”.
Ao longo de minha formação, várias oportunidades me foram proporcionadas para viver a itinerância, mas por mais despojamentos que essas experiências provocassem, eu sentia ainda exercer minha missão em um lugar privilegiado, como alguém que tinha algo de material ou intelectual para dar. E por mais que eu procurasse estabelecer uma relação igualitária com as pessoas, a própria imagem de frei presente no imaginário delas, de ser uma pessoa especial ou uma figura de respeito, as tornava distantes de mim de certa forma.
Ao caminhar pela América Latina, senti que eu exercia a dimensão fraterna e minha própria vocação de um outro lugar. Ao precisar de um lugar para dormir ou um prato de comida ou ainda, em um simples encontro com alguém na rua, eu oferecia uma palavra de esperança e ânimo, um sorriso e assim me sentia frei, irmão de todos.
Por tudo isso, eu não vejo essa longa caminhada que empreendi, como uma cisão com o projeto que iniciei a 26 anos, muito pelo contrário, entendo como uma radicalização e continuidade, mesmo que não possa ter respaldo institucional. Alguns irmãos deixam a ordem porque querem constituir família, ter bens ou porque não conseguem viver em fraternidade. Eu amo estar com os frades e com o povo. E realmente gostaria de caminhar com outros irmãos, mas não é porque eu gosto de viver dessa forma que deveria exigir o mesmo a quem quer que seja. E tampouco penso que os demais são menos frades por não viverem a itinerância do modo que a vivo.
Eu vejo essa longa peregrinação por diversos países, como mais uma etapa de formação para que eu seja um melhor irmão, uma pessoa melhor, mais amorosa, mais compassiva, mais desapegada, livre de todo egocentrismo, capacitando-me para mais compreender que ser compreendido e amar do que ser amado e em todas as circunstâncias, ser um instrumento de paz tal como rezei por todos esses anos.
Estou deixando a Ordem em termos institucionais, pois a estrutura não prevê e, atualmente, não comporta um estilo de vida como o que eu estou vivendo. Eu compreendo essas consequências e as aceito com serenidade. Ser frade não é uma função ou tampouco um título, mas um jeito de ser e viver. E tendo presente que ser irmão está tão encarnado em meu modo de ser e é resultado de toda a formação que recebi em mais de duas décadas e meia com os freis, não creio que deixo de ser um irmão, ao solicitar desligamento da ordem. Deixo de ser chamado de frei, deixo de usar o hábito, mas não deixo de ver cada um como irmão e irmã e de me oferecer como irmão. Devo admitir que deixar esses elementos simbólicos causam em mim certa dor pelo apreço e amor que tenho a eles e, talvez, pelo apego que desenvolvi à imagem de ser frei, no entanto, encaro esse momento, como mais um gesto de despojamento inerente à vocação franciscana.
Meu vínculo afetivo com os frades permanece. Pois não é um documento ou uma instituição que nos torna irmãos, mas os laços de afeto, diálogo e compreensão mútua ,enfim,tudo o que fomos desenvolvendo ao longo desses anos.
De acordo com o projeto inicial, estão previstos aproximadamente mais oito anos de caminhada. Depois disso, seria meu desejo retornar à província, caso me fosse permitido?De acordo com o modo que sinto e penso hoje, diria que sim. Contudo, para ser honesto, não sei como estarei vendo a vida depois dessa experiência. Posso responder por hoje, mas não pela pessoa que ainda não sou.
Meu profundo e sincero agradecimento por todo carinho, compreensão, atenção, oportunidades e aprendizados que recebi e recebo continuamente dos frades, dos amigos e amigas de todas as comunidades por onde passei. Eu, definitivamente, não seria quem sou se não tivesse recebido o amor, formação e valores que os frades e o povo me transmitiram ao longo desses 26 anos. Também apresento o meu sincero pedido de perdão a quem eu possa ter magoado, nas fraternidades, pastorais e comunidades. Muito obrigado pelo carinho dos frades, da família e do povo querido de nossas comunidades. Um bom caminho para todas e todos.
NÃO HÁ MOTIVOS PRA VIAJAR
Em 2018 deixei Porto Alegre, minha cidade natal, com um sonho: fazer uma volta ao mundo a pé por aproximadamente dez anos. Desde então já caminhei quase dez mil km por sete países. Eu gostaria de ouvir tantas perguntas interessantes e instigantes sobre essa viagem, mas sabem qual é a pergunta que mais ouço?
Porque eu viajo pelo mundo? Sim, é natural que façam essa pergunta, mas admito que me sinto incomodado com tal questionamento pois parece condicionar minha viagem a um porquê ou a uma causa lógica e racional. Eu não pergunto porque uma mãe ama seu filho, ela simplesmente o ama, não é mesmo? Há coisas que não necessitam de um motivo e talvez viajar seja uma delas. O pequeno príncipe diria que essa é uma típica pergunta de adultos e ficariam muito satisfeitos se minha resposta contivesse números e fórmulas.
Em 2013 quando eu fazia o caminho de Santiago de Compostela essa era uma pergunta recorrente e as pessoas ficavam frustradas ou decepcionadas quando eu dizia que não tinha nenhuma causa em especial. Eu não estava procurando respostas para a vida. Eu não queria superar uma perda ou me curar de um trauma. E agora tampouco. Eu viajo a pé simplesmente porque senti vontade de fazer isso.
Fui chamado de Forrest Gump da América Latina por alguns jornalistas dos países que passei. Eu gosto e me identifico com esse título. No filme, as pessoas esperavam que o personagem, quando perguntado pelo motivo de sua corrida, oferecesse uma resposta filosófica, que servisse de inspiração para outras pessoas. Forrest corre, simplesmente, porque sentiu vontade de correr. Em outras palavras, ele não se pergunta pelo sentido da vida, ele simplesmente a vive. Da mesma forma, as pessoas esperam que essa caminhada tenha um motivo que se encaixe nos parâmetros que, socialmente e culturalmente, aceitamos como válidos para se construir uma vida. Eu caminho pelo simples fato de que tive oportunidades que me permitiram ver que é possível viajar caminhando.