Uma hospedaria muito peculiar

É uma luzinha fraca, quase chata, intermitente e multicor. Na penumbra o prazer está mais à vontade. A música é forte. Nas mesas, cervejas e ao redor delas íntimos desconhecidos. Às vezes, como ontem à tarde, há discussões de ânimos exaltados. Ela exigia do rapaz que estava a sua frente, “eu quero meu dinheiro, tu não vais sair daqui enquanto não me pagar!” 

Quando eu era criança escutava minha mãe dizendo que a estratégia era embebedar o cliente para poder lucrar mais, ele gastava mais com bebida e ainda estava mais vulnerável para ser roubado. E naquela situação, obviamente, era ele que reclamava pelo dinheiro que de forma alguma seria devolvido, pelo fato que bêbado nunca tinha ou terá razão. 

Hoje pela manhã me acordei com vozes de crianças que ingenuamente brincavam pelo salão. Não tinha como não ser levado para os meus cinco ou seis anos. Por volta das nove horas, minha irmã Aline e eu éramos conduzidos ao trabalho da mãe. Os quartos eram colados um no outro e a cama dela era de tijolo. Muito similar ao lugar em que estou agora. No salão tomávamos café com as amigas da mãe que também estavam acordando. 

Ontem, logo que entrei aqui, notei que a placa de hotel era só mais um disfarce de nossas costumeiras hipocrisias sociais. Todos, menos os viajantes como eu, sabem que aqui não é um hotel. Ainda assim fiquei, pois, era a metade do preço de um hotel convencional. Na América latina também os motéis podem ser mais baratos. Apenas alguns minutos foram suficientes para que eu dissesse a mim mesmo, não gosto desse ambiente e acrescentei: por que estou sempre voltando a minha infância? Alguns meses antes de iniciar a viagem comentei com um frade que é psicólogo que quando éramos crianças, devido ao trabalho de minha mãe, estávamos constantemente mudando, sempre em cidades diferentes. E lembro que comentei com o frade que apesar de não gostar daquelas mudanças eu tinha a impressão que com a viagem estava escolhendo um estilo de vida que de certa forma faria com que eu reproduzisse o que vivi em minha infância.

Ontem, apenas alguns minutos após me sentir desconfortável com aquela atmosfera ao meu redor, percebi duas coisas importantes. A primeira foi que ao visitar aquelas memórias da infância, a rejeição a elas não vieram delas em si, mas da leitura que fiz ao longo dos anos dessas vivências. Quando era criança eu não achava ruim estar em um cabaré. Eu estava apenas visitando minha mãe em seu trabalho e amava quando os amigos dela me pagavam refrigerantes ou quando me davam fichas para tocar as músicas em uma máquina. Nós, minha irmã e eu saíamos na metade da tarde, que era quando começavam a chegar mais amigos de minha mãe. Era assim que eu via tudo isso. Foi somente como jovem e adulto, já “contaminado” por rótulos e preconceitos, que eu disse que não gostava daqueles lugares. Minha percepção e sensação de desgosto e desaprovação não provinha da experiência em si, mas de uma leitura preconceituosa posterior. Com isso aprendi que se pode ter diferentes leituras sobre um fato do passado e que interpretações compassivas e amorosas despertam em nós sentimentos de unidade e comunhão, enquanto as interpretações de discriminação são disjuntivas e geram uma falsa percepção de um eu bom e outro mau.

Vamos ao segundo insight. Ontem, uns trinta minutos depois de minha chegada, fui dormir. Quando acordei, a maioria dos que estavam no salão queriam tirar fotos comigo, pois haviam dito a eles que o brasileiro que estava fazendo uma volta ao mundo a pé e havia aparecido na TV estava hospedado ali. Um rapaz me chamou para tomar cerveja, eu recusei agradecendo, pois, já estava com mate feito no quarto. Ele então insistiu para que eu aceitasse cinco mil francos para pagar minha hospedagem. Aceitei, agradeci mais uma vez e pensei, mais uma das cenas de minha infância se repetindo: estou recebendo dinheiro de um dos amigos de minha mãe. Até aí nada de novo.

O segundo insight veio quando me aproximei de duas jovens que pareciam um pouco deslocadas. Primeiramente supus que assim estavam porque eram novatas, talvez fossem os primeiros dias na profissão. No entanto, ao me aproximar vi que as gurias não entendiam nada do que estava sendo falado no local. Eram nigerianas, não estavam familiarizadas com o idioma da Costa do Marfim. Presumo estarem na casa para atender os clientes ganenses, visto que estamos a poucos quilômetros da fronteira com a Gana, país anglófono.

 Já ouvi muitas vezes que com muito clientes as prostitutas atuam como psicólogas, escutam suas queixas e lhes animam em suas esperanças. Ontem, senti nitidamente que fui eu que desempenhei esse papel enquanto conversava com as nigerianas. E foi então que percebi que não é verdade que estou preso no loop de minha infância. O Marcelo que ontem falava com elas não é aquela criança do passado. Aquele que me deu cinco mil francos também não tem nenhuma relação com aqueles que me davam dinheiro para comprar refrigerante. Não creio em absoluto que haja uma missão misteriosa ou um significado místico que explique minha presença nesses lugares. E pouco me interessa se há ou não fatores inconscientes. O que me importa é o modo como respondo ou atuo nós lugares em que estou. O Marcelo de hoje escolheu responder com carinho, amor e empatia as circunstâncias que se lhe apresentam. Nem sempre consigo, mas ao menos esta é minha intenção. Quando percebi o bem que estava fazendo para aquelas meninas, também vi que outro amigo frade deveria reformular sua tese. Durante meu noviciado ela dizia: um capuchinho pode ter diferentes profissões, exceto porteiro de cabaré. Qualquer lugar é lugar para semear o bem. E como disse Jesus que as prostitutas entrarão no céu primeiro do que muitos que se julgam como muito religiosos, suponho que é melhor estar mais próximo delas do que destes.

Um comentário em “Uma hospedaria muito peculiar”

  1. E o que importa é que o seu olhar de inocência e de ternura não mudou.
    A vida muda, e vai passando por nós e nos deixando marcas. Mas a essência está lá, no fundo do seu coração acolhedor e generoso. Sob as estrelas do céu de todos os horizontes existem encontros, momentos de comunhão e de partilha.
    Como nos caminhos percorridos são eles que finalmente nos levam à generosidade do fundo do nosso coração.
    Bom caminho amigo

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