Polícia e corrupção

Ao comentar com uma amiga que eu havia sido rude com um policial que havia me interpelado na estrada, ela mostrou-se surpresa por não esperar tão reação de minha parte. A verdade é que, a partir de minha experiência como jovem pobre da periferia de uma grande cidade, não tenho uma boa imagem da polícia. Há, evidentemente, profissionais justos e honestos, no entanto, tenho dúvida se representam a maioria. E aqui na África os exemplos que tenho também não são bons.

Recordo que certa vez, eu deveria ter uns treze anos, meus colegas e eu estávamos coletando no comércio local doações para uma festa na escola. Quando percebemos que nosso ônibus se aproximava do ponto de parada, deixamos às pressas a loja em que estávamos e fomos para o ônibus. Apenas alguns minutos depois, uma viatura da polícia fez com que o veículo parasse bruscamente. Fomos violentamente tirados do ônibus e colocados no chão para uma revista com armas apontadas para nós. Devo Recordá-los de que éramos adolescentes de não mais de treze ou catorze anos. Fomos considerados suspeitos de roubo à loja por termos corrido para entrarmos no ônibus. Não havia nenhuma queixa de roubo, nenhuma acusação, mas jovens pobres não podem correr para pegar o ônibus como todo mundo. Não foram mais truculentos conosco porque a mãe de um dos nossos estava no ônibus e pode nos defender. Talvez alguns pensem que esse foi um episódio isolado, no entanto, infelizmente tantos outros se deram e ouso dizer que essa é, infelizmente, uma rotina na vida de jovens pobres, pior ainda se forem negros.

Aqui no continente africano, com exceção do Marrocos, em uma distância de 10 km, pode haver diversas barreiras de diferentes setores da polícia. Se o condutor escapar de uma, cai em outra. Na maioria das barreiras, o motorista, ao receber o sinal do policial para parar, apenas alcança ao oficial, sem discrição alguma, certa quantia de dinheiro e parte. Às vezes, uma das partes tenta negociar, o motorista pode alegar que pagou alguns metros antes para outro policial e às vezes o policial pode alegar que é muito pouco o que está recebendo. Como a corda estoura sempre no lado mais fraco, são quase em vão as tentativas do motorista para não pagar.

Na Guiné-Bissau, em alguns vilarejos, um imposto não oficial é cobrado por policiais aos vendedores ambulantes. Por que vocês não protestam contra a ação da polícia? Questionei certa vez um jovem que conversava comigo – e suas respostas, para minha surpresa, revelaram grande empatia para com os que o oprimiam. Eles recebem um salário muito pequeno, às vezes ficam meses sem receber. Se não cobrarem propinas, não podem sustentar suas famílias – afirmou o rapaz. A corrupção policial é tão grande e tão recorrente que parece ser vista como natural. Na Libéria, há, inclusive, próximo às barreiras, grandes painéis com desenhos ilustrativos indicando que é crime pedir ou oferecer propina, o que indica que as autoridades governamentais estão cientes dessa realidade. Certamente não será um outdoor que irá mudar ou impedir essa prática.

Até agora, não vi presença mais ostensiva da polícia do que na Costa do Marfim. Em outros países, sabia que, se eu não quisesse parar para dar explicações aos policiais de quem eu era e o que eu estava fazendo, bastava caminhar por estradas rurais. Na Costa do Marfim, ao longo de um trecho de 20 km em uma estrada de terra em zona rural, pode haver policiais em mais de três pontos diferentes. Nesses lugares, o alvo são os motoqueiros. Devo acrescentar que, em regiões de difícil acesso e estradas muito ruins, a motocicleta é o meio de transporte mais comum. Esses motoqueiros estariam cometendo alguma infração? Sim, várias. A maioria não tem habilitação. Penso que a maioria também não tenha documento do veículo, nesses lugares a compra e venda é feita de modo informal. Além disso, há tantas outras irregularidades, um espelho quebrado, um farol que não funciona, uma parte amarrada com arame e é comum ver quatro ou cinco passageiros, obviamente sem capacetes, em uma única moto. São por essas razões que são parados. Não estão transportando drogas, nem tramando nenhuma conspiração contra o governo. Trata-se de pessoas humildes, trabalhadores e trabalhadoras do campo que devem pagar diversas vezes ao dia para poderem se deslocar na região em que vivem.

Comigo, na maioria dos países, alguns policiais em uma primeira abordagem são pouco simpáticos, mas tornam-se gentis ao saber o que estou fazendo. A única vez que um policial tentou me pedir propina foi na Guiné. Eu caminhava por uma avenida movimentada, sem meu carrinho Santiago. Ao me avistar, o policial, sem nenhuma saudação, exigiu que eu apresentasse passaporte e visto. Na Guiné, o visto é eletrônico, mas o policial, despreparado para abordar turistas, não sabia disso. Expliquei que eu portava tudo o que era exigido de um turista e que, se ele tivesse alguma dúvida, poderia ligar para a polícia de migração. Ainda tentando impor certa autoridade muito seriamente, ele me disse: e tu não vais deixar nada para mim? Eu sorri e lhe disse: posso lhe dar um abraço, ou melhor, posso lhe dar 214 milhões de abraços da parte de cada um dos brasileiros e brasileiras. Ele pareceu não ter gostado de minha brincadeira e apenas fez sinal para que eu partisse. Eu sinto que estou capacitado para argumentar, mas e os que não estão, o que podem fazer? O que eu, como viajante, posso fazer para que essa realidade mude? Aparentemente, nada e isso gera em mim muita frustração e me deixa sempre na defensiva quando vejo um policial. Não tenho nenhum complexo de super-herói. E tampouco creio em ações individuais, mas eu realmente gostaria de poder fazer alguma coisa. Se tiveres alguma sugestão, comente abaixo, por favor. 

Uma hospedaria muito peculiar

É uma luzinha fraca, quase chata, intermitente e multicor. Na penumbra o prazer está mais à vontade. A música é forte. Nas mesas, cervejas e ao redor delas íntimos desconhecidos. Às vezes, como ontem à tarde, há discussões de ânimos exaltados. Ela exigia do rapaz que estava a sua frente, “eu quero meu dinheiro, tu não vais sair daqui enquanto não me pagar!” 

Quando eu era criança escutava minha mãe dizendo que a estratégia era embebedar o cliente para poder lucrar mais, ele gastava mais com bebida e ainda estava mais vulnerável para ser roubado. E naquela situação, obviamente, era ele que reclamava pelo dinheiro que de forma alguma seria devolvido, pelo fato que bêbado nunca tinha ou terá razão. 

Hoje pela manhã me acordei com vozes de crianças que ingenuamente brincavam pelo salão. Não tinha como não ser levado para os meus cinco ou seis anos. Por volta das nove horas, minha irmã Aline e eu éramos conduzidos ao trabalho da mãe. Os quartos eram colados um no outro e a cama dela era de tijolo. Muito similar ao lugar em que estou agora. No salão tomávamos café com as amigas da mãe que também estavam acordando. 

Ontem, logo que entrei aqui, notei que a placa de hotel era só mais um disfarce de nossas costumeiras hipocrisias sociais. Todos, menos os viajantes como eu, sabem que aqui não é um hotel. Ainda assim fiquei, pois, era a metade do preço de um hotel convencional. Na América latina também os motéis podem ser mais baratos. Apenas alguns minutos foram suficientes para que eu dissesse a mim mesmo, não gosto desse ambiente e acrescentei: por que estou sempre voltando a minha infância? Alguns meses antes de iniciar a viagem comentei com um frade que é psicólogo que quando éramos crianças, devido ao trabalho de minha mãe, estávamos constantemente mudando, sempre em cidades diferentes. E lembro que comentei com o frade que apesar de não gostar daquelas mudanças eu tinha a impressão que com a viagem estava escolhendo um estilo de vida que de certa forma faria com que eu reproduzisse o que vivi em minha infância.

Ontem, apenas alguns minutos após me sentir desconfortável com aquela atmosfera ao meu redor, percebi duas coisas importantes. A primeira foi que ao visitar aquelas memórias da infância, a rejeição a elas não vieram delas em si, mas da leitura que fiz ao longo dos anos dessas vivências. Quando era criança eu não achava ruim estar em um cabaré. Eu estava apenas visitando minha mãe em seu trabalho e amava quando os amigos dela me pagavam refrigerantes ou quando me davam fichas para tocar as músicas em uma máquina. Nós, minha irmã e eu saíamos na metade da tarde, que era quando começavam a chegar mais amigos de minha mãe. Era assim que eu via tudo isso. Foi somente como jovem e adulto, já “contaminado” por rótulos e preconceitos, que eu disse que não gostava daqueles lugares. Minha percepção e sensação de desgosto e desaprovação não provinha da experiência em si, mas de uma leitura preconceituosa posterior. Com isso aprendi que se pode ter diferentes leituras sobre um fato do passado e que interpretações compassivas e amorosas despertam em nós sentimentos de unidade e comunhão, enquanto as interpretações de discriminação são disjuntivas e geram uma falsa percepção de um eu bom e outro mau.

Vamos ao segundo insight. Ontem, uns trinta minutos depois de minha chegada, fui dormir. Quando acordei, a maioria dos que estavam no salão queriam tirar fotos comigo, pois haviam dito a eles que o brasileiro que estava fazendo uma volta ao mundo a pé e havia aparecido na TV estava hospedado ali. Um rapaz me chamou para tomar cerveja, eu recusei agradecendo, pois, já estava com mate feito no quarto. Ele então insistiu para que eu aceitasse cinco mil francos para pagar minha hospedagem. Aceitei, agradeci mais uma vez e pensei, mais uma das cenas de minha infância se repetindo: estou recebendo dinheiro de um dos amigos de minha mãe. Até aí nada de novo.

O segundo insight veio quando me aproximei de duas jovens que pareciam um pouco deslocadas. Primeiramente supus que assim estavam porque eram novatas, talvez fossem os primeiros dias na profissão. No entanto, ao me aproximar vi que as gurias não entendiam nada do que estava sendo falado no local. Eram nigerianas, não estavam familiarizadas com o idioma da Costa do Marfim. Presumo estarem na casa para atender os clientes ganenses, visto que estamos a poucos quilômetros da fronteira com a Gana, país anglófono.

 Já ouvi muitas vezes que com muito clientes as prostitutas atuam como psicólogas, escutam suas queixas e lhes animam em suas esperanças. Ontem, senti nitidamente que fui eu que desempenhei esse papel enquanto conversava com as nigerianas. E foi então que percebi que não é verdade que estou preso no loop de minha infância. O Marcelo que ontem falava com elas não é aquela criança do passado. Aquele que me deu cinco mil francos também não tem nenhuma relação com aqueles que me davam dinheiro para comprar refrigerante. Não creio em absoluto que haja uma missão misteriosa ou um significado místico que explique minha presença nesses lugares. E pouco me interessa se há ou não fatores inconscientes. O que me importa é o modo como respondo ou atuo nós lugares em que estou. O Marcelo de hoje escolheu responder com carinho, amor e empatia as circunstâncias que se lhe apresentam. Nem sempre consigo, mas ao menos esta é minha intenção. Quando percebi o bem que estava fazendo para aquelas meninas, também vi que outro amigo frade deveria reformular sua tese. Durante meu noviciado ela dizia: um capuchinho pode ter diferentes profissões, exceto porteiro de cabaré. Qualquer lugar é lugar para semear o bem. E como disse Jesus que as prostitutas entrarão no céu primeiro do que muitos que se julgam como muito religiosos, suponho que é melhor estar mais próximo delas do que destes.

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