Queridas amigas e queridos amigos!
Vocês devem ter acompanhado por aqui que retomei o “ Caminho de Aline”, ou seja, segue o projeto de fazer uma volta ao mundo a pé por aproximadamente mais 8 anos. De coração aberto, quero partilhar com vocês algumas consequências dessa decisão. Para tanto, terei que voltar um pouco no tempo e, como a história não é curta, convido vocês a pegarem um chimarrão ou um chazinho e me acompanharem nessa travessia.
Em 1994, com dezesseis anos de idade, eu estava sozinho sem água, luz e comida. Foi então que a dona Eva, uma vizinha, que de vez em quando, partilhava comigo um pouco de alimento, sugeriu que eu fosse padre, pois assim, segundo ela, eu teria comida, estudo e casa. Alguns meses depois, de uma freira idosa recebi o livro “o Francisco que está em você” do frei capuchinho, Wilson João Sperandio. Ao ler aquelas páginas, senti que aquele era um homem livre e que, eu, apesar de viver em completa miséria, sentia-me preso a tantas coisas, mas desejei ser livre como Francisco.
Já faz vinte e seis anos que passei a conviver com os freis capuchinhos e, praticamente, tudo no que acredito , o modo como me relaciono com as pessoas, os valores que defendo e as escolhas que faço são resultados dessa vivência. Para mim, ser frade, basicamente se resume em ver os demais seres como meus irmãos. Por isso, ofereço-me às pessoas que encontro em meu caminho como um verdadeiro irmão. E posso dizer a vocês, de todo o meu coração, que gosto de viver assim.
O desejo de caminhar pelo mundo, direta ou indiretamente têm duas fontes: minha história familiar, pois durante minha infância mudávamos constantemente com a esperança de que a vida seria melhor e, a formação que recebi ao longo de todo esse tempo, também foi um estímulo para tal. Na vida religiosa me foi falado que Francisco de Assis, por amor a Jesus, que era pobre e itinerante, queria que os frades vivessem como peregrinos e forasteiros. E foi no noviciado, que nosso mestre nos incentivou a fazer a primeira experiência radical de itinerância. Caminhamos, um confrade e eu por vários dias, levando apenas a roupa do corpo, o breviário e um evangelho. Naquela ocasião, sujos e cansados, depois de caminharmos por um tempo significativo, fomos à missa e em seguida, fomos à casa paroquial solicitar um lugar para dormir. Uma senhora que havia nos visto na missa, perguntou: vocês são franciscanos? Como ela poderia ter descoberto isso, se não estávamos usando hábito e nenhum outro sinal religioso? Sua resposta foi direta e nos encheu de alegria: “vocês estavam rezando e são pobres e alegres”.
Ao longo de minha formação, várias oportunidades me foram proporcionadas para viver a itinerância, mas por mais despojamentos que essas experiências provocassem, eu sentia ainda exercer minha missão em um lugar privilegiado, como alguém que tinha algo de material ou intelectual para dar. E por mais que eu procurasse estabelecer uma relação igualitária com as pessoas, a própria imagem de frei presente no imaginário delas, de ser uma pessoa especial ou uma figura de respeito, as tornava distantes de mim de certa forma.
Ao caminhar pela América Latina, senti que eu exercia a dimensão fraterna e minha própria vocação de um outro lugar. Ao precisar de um lugar para dormir ou um prato de comida ou ainda, em um simples encontro com alguém na rua, eu oferecia uma palavra de esperança e ânimo, um sorriso e assim me sentia frei, irmão de todos.
Por tudo isso, eu não vejo essa longa caminhada que empreendi, como uma cisão com o projeto que iniciei a 26 anos, muito pelo contrário, entendo como uma radicalização e continuidade, mesmo que não possa ter respaldo institucional. Alguns irmãos deixam a ordem porque querem constituir família, ter bens ou porque não conseguem viver em fraternidade. Eu amo estar com os frades e com o povo. E realmente gostaria de caminhar com outros irmãos, mas não é porque eu gosto de viver dessa forma que deveria exigir o mesmo a quem quer que seja. E tampouco penso que os demais são menos frades por não viverem a itinerância do modo que a vivo.
Eu vejo essa longa peregrinação por diversos países, como mais uma etapa de formação para que eu seja um melhor irmão, uma pessoa melhor, mais amorosa, mais compassiva, mais desapegada, livre de todo egocentrismo, capacitando-me para mais compreender que ser compreendido e amar do que ser amado e em todas as circunstâncias, ser um instrumento de paz tal como rezei por todos esses anos.
Estou deixando a Ordem em termos institucionais, pois a estrutura não prevê e, atualmente, não comporta um estilo de vida como o que eu estou vivendo. Eu compreendo essas consequências e as aceito com serenidade. Ser frade não é uma função ou tampouco um título, mas um jeito de ser e viver. E tendo presente que ser irmão está tão encarnado em meu modo de ser e é resultado de toda a formação que recebi em mais de duas décadas e meia com os freis, não creio que deixo de ser um irmão, ao solicitar desligamento da ordem. Deixo de ser chamado de frei, deixo de usar o hábito, mas não deixo de ver cada um como irmão e irmã e de me oferecer como irmão. Devo admitir que deixar esses elementos simbólicos causam em mim certa dor pelo apreço e amor que tenho a eles e, talvez, pelo apego que desenvolvi à imagem de ser frei, no entanto, encaro esse momento, como mais um gesto de despojamento inerente à vocação franciscana.
Meu vínculo afetivo com os frades permanece. Pois não é um documento ou uma instituição que nos torna irmãos, mas os laços de afeto, diálogo e compreensão mútua ,enfim,tudo o que fomos desenvolvendo ao longo desses anos.
De acordo com o projeto inicial, estão previstos aproximadamente mais oito anos de caminhada. Depois disso, seria meu desejo retornar à província, caso me fosse permitido?De acordo com o modo que sinto e penso hoje, diria que sim. Contudo, para ser honesto, não sei como estarei vendo a vida depois dessa experiência. Posso responder por hoje, mas não pela pessoa que ainda não sou.
Meu profundo e sincero agradecimento por todo carinho, compreensão, atenção, oportunidades e aprendizados que recebi e recebo continuamente dos frades, dos amigos e amigas de todas as comunidades por onde passei. Eu, definitivamente, não seria quem sou se não tivesse recebido o amor, formação e valores que os frades e o povo me transmitiram ao longo desses 26 anos. Também apresento o meu sincero pedido de perdão a quem eu possa ter magoado, nas fraternidades, pastorais e comunidades. Muito obrigado pelo carinho dos frades, da família e do povo querido de nossas comunidades. Um bom caminho para todas e todos.